quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

ENCONTRO PEDAGÓGICO 2017

A equipe do CEI Almerinda de Albuquerque realiza, nos dias 25, 26 e 27 de janeiro, o primeiro Encontro Pedagógico do ano letivo de 2017. O dia de hoje foi destinado ao estudo das considerações para a (re)elaboração da Proposta Curricular das instituições de Educação Infantil do município de Fortaleza. O texto escolhido para refletir acerca das razões pelas quais escolhemos a educação como caminho foi Sobre Ideias e Pães, de Mario Sergio Cortella (abaixo). Realizamos, ainda, a avaliação do trabalho desenvolvido no ano de 2016. Agradecemos a  participação de todo o grupo. 




SOBRE IDEIAS E PÃES
Mario Sergio Cortella

Em meados dos anos 1970, dois caciques da nação xavante vieram, de avião, visitar a cidade de São Paulo; a visão aérea noturna de uma megalópole (com sua "floresta" de prédios) os impressionou sobremaneira (tal como, para nós, é inesquecível e confusa a paisagem amazônica). Foram dormir em um hotel e, no dia seguinte, levados para passear. Aonde levá-los, senão para ver o diferente, o exótico, o inédito? Andaram de metrô (recém-inaugurado), caminharam pela Av. Paulista (com suas catedrais financeiras altíssimas), visitaram um shopping center (só havia dois naquele tempo) e, por fim, foram conhecer um dos prédios históricos paulistanos na região central que abriga um imenso mercado municipal (entreposto de frutas, legumes e cereais).
A ida ao mercado tinha a finalidade de surpreendê-los com um cenário paradisíaco: alimentos acumulados em grande quantidade. Como, naquela época, eles quase não usassem o dinheiro como mediação para qualidade de vida, o alimento farto representava uma riqueza incomensurável. Entraram, deram dois passos no interior do prédio e, subitamente, estancaram boquiabertos com o cenário: pilhas e pilhas de alface, de cenoura, de tomate, de laranja etc. Começaram a andar por entre as pilhas e caixas, em meio àquele ruído de vozes, folhas e frutos esmagados e caídos no piso, um movimento incessante.
De repente, um deles viu algo que nenhum e nenhuma de nós veria, pois não chamaria nossa atenção. Ele apontou e disse: O que ele está fazendo? "Ele" era um menino de uns 10 anos de idade, negro, pobre (nós o saberíamos, pelas vestimentas), que no chão catava verduras e frutas amassadas, estragadas e sujas, e as colocava em um saquinho plástico. A resposta foi a "óbvia": Ele está pegando comida.
O cacique continuou passeando, calado (provavelmente tentando compreender a resposta dada); depois de uns 10 minutos, voltou à carga: Não entendi. Por que o menino está pegando aquela comida podre se tem tanta coisa boa nas pilhas e caixas? Outra resposta evidente: Porque para pegar nas pilhas precisa ter dinheiro. Insiste o xavante (já irritante, pois está escavando onde a injustiça sangra): E por que ele não tem dinheiro? Réplica enfadonha do civilizado: Porque ele é criança! Torna o índio: E o pai dele? Tem dinheiro? Outra obviedade: Não, não tem. Questão final: Então, não entendi de novo. Por que você que é grande tem dinheiro e o pai do menino, que também é, não tem? A única saída possível foi responder: Porque aqui é assim!
Os índios pediram para ir embora, não apenas do mercado, mas da cidade. Não tiveram uma revolta ética, mas cultural; não captaram um dos modos de organização de nossa cultura. Não conseguiram compreender essa situação tão "normal": se uma criança tem fome e não tem dinheiro, come comida estragada. Para que pudessem aceitar mais tranquilamente o "porque aqui é assim" teriam que ter sido formados e formadores da nossa sociedade, frequentado nossas instituições sociais e, também, nossas escolas; teriam que ter sido "civilizados".
A intenção do relato anterior não é moralista nem deseja propor um "modelo indígena de existência"; é ressaltar aquela que, no nosso entender, é a maior tarefa dos educadores e das educadoras, na junção entre a epistemologia e a política: o esforço de destruição do "porque aqui é assim".
 A ruptura do "porque aqui é assim" principia pela recusa à ditadura dos fatos consumados e à ditadura fatalista de um presente que aparenta ser invencível, tamanhos são os obstáculos cotidianos com os quais nos deparamos.
É preciso, em Educação, reinventar, em conjunto, uma ética da rebeldia, uma ética que reafirme nossa possibilidade de dizer não e que valorize a inconformidade docente.
Não é mero acaso que a primeira palavra, de fato, que um ser humano aprende a dizer e a entender é o não. Seja oral ou gestualmente, o não é a fundação a partir da qual se constroi nossa principal característica: a liberdade, a capacidade de ultrapassar as determinações da natureza e das situações presumidamente limitantes. Só quem é capaz de dizer o não pode dizer o sim, isto é, pode escolher e acatar deliberadamente o curso das circunstâncias e das exigências externas e internas.
Ser humano é ser junto. É necessário negar a afirmação liberticida de que "a minha liberdade acaba quando começa a do outro". A minha liberdade acaba quando acaba a do outro; se algum humano ou humana não é livre, ninguém é livre.
Se alguém não for livre da fome, ninguém é livre da fome. Se algum homem ou mulher não for livre da discriminação, ninguém é livre da discriminação. Se alguma criança não for livre da falta de escola, de família, de lazer, ninguém é livre.
A Educação e a Escola são os lugares nos quais podemos dizer e exercer mais fortemente o nosso não. Não à miséria, não à injustiça; não à contradição humano X humano; não à Ciência exclusivista; não ao poder opressor.
Afinal de contas, por que somos educadores e educadoras? Por que dedicarmos toda uma existência a essa atividade cansativa, econômica e socialmente prejudicada e desvalorizada, entremeada de percalços?
Tenho uma suspeita: por causa da paixão. Paixão pelo quê? Por ganhar pouco, trabalhar muito e, toda noite, querer desistir e, no dia seguinte, de manhãzinha, estar, de novo, na escola? Vinte, trinta (aposenta e volta) quarenta ou mais anos na profissão, alimentando o corpo docente nas reuniões movidas a café, chá e bolacha?
Não. Paixão por uma ideia irrecusável: gente foi feita para ser feliz! E esse é nosso trabalho; não só nosso, mas também nosso. Paixão pela inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela derrota da desesperança; paixão pela ideia de, procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma, pelo futuro.
Nosso "negócio” é o futuro... Cada um e cada uma de nós tem contato diariamente com o futuro: muitas e muitos, quando começaram a dar aulas, tinham 16 anos de idade, e os alunos 7; fizemos 20, eles chegaram com 7; atingimos os 30, eles estavam com 7, alcançamos 40, e eles 7 etc. etc.
Cada dia, encontramos o que há de mais novo na humanidade, porque também o somos.
Desse ponto de vista, é absurda a ideia que entende que alguém, quanto mais vive, mais velho fica. Para que alguém, quanto mais vivesse mais velho se tornasse, teríamos que ter nascido prontos e irmos nos gastando. Ora, isso acontece com carros, fogões ou sapatos; com humanos e humanas, não. Nascemos não-prontos e vamos nos fazendo; eu, neste momento, sou o mais novo de mim, minha mais nova edição ("revista e ampliada") e, se o critério para a velhice é o tempo, o mais velho de mim está no passado.
Gostaríamos de retomar aqui, como conclusão, algo que escrevemos quando éramos mais velhos:
O educador como partejador de futuro é um educador que procura realizar as possibilidades que a Educação tem de colaborar na conquista de uma realidade social superadora das desigualdades. Estou entendendo realizar como tornar real mesmo; muitas vezes fala-se em realizar como um anglicismo originado de to realize (compreender, constatar), que limita a realização das possibilidades ao ‘dar-se conta’ delas.
A nova realidade social a ser parida também por nós educadores é mais do que uma espera (nostalgia do futuro); é um escavar no hoje de nossas práticas à procura daquilo que hoje pode ser feito. Esse hoje é uma das pontas do nó do futuro a ser desatado, fruto de situações que não se alteram por si mesmas nem se resolvem com um "ah! se eu pudesse...", "ah!, no meu tempo". ...
Nosso tempo, o dos educadores, é este hoje em que já se encontra, em gestação, o amanhã. Não um qualquer, mas um amanhã intencional, planejado, provocado agora. Um amanhã sobre o qual não possuímos certezas, mas que sabemos possibilidade.
Pode parecer romântico (até piegas); no entanto, é dessa utopia que não nos podemos apartar, sob a pena de perdermos o sentido de humanidade.
E nessa paixão pelo humano que habita, de forma convulsiva, a tensão articulada entre o epistemológico e o político, onde se dá o encontro do sonho de um Conhecimento como ferramenta da Liberdade e de um Poder como amálgama da convivência igualitária.
Há um ditado chinês que diz que, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um pão, e, ao se encontrarem, eles trocam os pães, cada homem vai embora com um; porém, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando uma ideia, e, ao se encontrarem, eles trocam as ideias, cada homem vai embora com duas.
Quem sabe é esse mesmo o sentido do nosso fazer: repartir ideias, para todos terem pão...

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