A equipe do CEI Almerinda de Albuquerque realiza, nos dias 25, 26 e 27 de janeiro, o primeiro Encontro Pedagógico do ano letivo de 2017. O dia de hoje foi destinado ao estudo das considerações para a (re)elaboração da Proposta Curricular das instituições de Educação Infantil do município de Fortaleza. O texto escolhido para refletir acerca das razões pelas quais escolhemos a educação como caminho foi Sobre Ideias e Pães, de Mario Sergio Cortella (abaixo). Realizamos, ainda, a avaliação do trabalho desenvolvido no ano de 2016. Agradecemos a participação de todo o grupo.
SOBRE IDEIAS E PÃES
Mario Sergio
Cortella
Em meados dos anos 1970, dois caciques da nação xavante vieram, de avião,
visitar a cidade de São Paulo; a visão aérea noturna de uma megalópole (com sua "floresta" de
prédios) os impressionou sobremaneira (tal como, para nós, é inesquecível e
confusa a paisagem amazônica). Foram dormir em um hotel e, no
dia seguinte, levados para passear. Aonde levá-los, senão para ver o diferente,
o exótico, o inédito? Andaram de metrô (recém-inaugurado), caminharam pela Av.
Paulista (com suas catedrais financeiras altíssimas), visitaram um shopping center (só havia dois naquele tempo) e, por fim, foram conhecer
um dos prédios históricos paulistanos na região central que abriga um imenso mercado municipal (entreposto de frutas, legumes e
cereais).
A ida ao mercado tinha a finalidade de surpreendê-los com um cenário
paradisíaco: alimentos acumulados em grande quantidade. Como, naquela época, eles quase não usassem o
dinheiro como mediação para qualidade de vida, o alimento farto representava
uma riqueza incomensurável. Entraram, deram dois passos no interior do
prédio e, subitamente, estancaram boquiabertos com o cenário: pilhas e pilhas
de alface, de cenoura, de tomate, de laranja etc. Começaram a andar por entre
as pilhas e caixas, em meio àquele ruído de vozes, folhas e frutos esmagados e
caídos no piso, um movimento incessante.
De repente, um deles viu algo que nenhum e nenhuma de nós
veria, pois não chamaria nossa atenção. Ele apontou e disse: O que ele está fazendo? "Ele" era
um menino de uns 10 anos de idade, negro, pobre (nós o saberíamos, pelas
vestimentas), que no chão catava verduras e frutas amassadas, estragadas e
sujas, e as colocava em um saquinho plástico. A resposta foi a
"óbvia": Ele está pegando comida.
O cacique continuou passeando, calado (provavelmente tentando compreender
a resposta dada); depois de uns 10 minutos, voltou à carga: Não entendi. Por que o menino está pegando aquela comida podre se tem tanta coisa boa nas pilhas e caixas? Outra resposta evidente: Porque para pegar nas pilhas precisa ter dinheiro. Insiste o xavante (já irritante, pois está escavando onde a injustiça
sangra): E por que ele não tem dinheiro? Réplica enfadonha do
civilizado: Porque ele é criança! Torna o índio: E o pai dele? Tem dinheiro? Outra obviedade: Não,
não tem. Questão final: Então, não entendi de novo. Por que você que é grande tem dinheiro e o pai
do menino, que também é, não tem? A única saída possível
foi responder: Porque aqui é assim!
Os índios pediram para ir embora, não apenas do mercado, mas da cidade.
Não tiveram uma revolta ética, mas cultural; não captaram um dos modos de organização de nossa cultura. Não
conseguiram compreender essa situação tão "normal": se uma
criança tem fome e não tem dinheiro, come comida estragada. Para que pudessem
aceitar mais tranquilamente o "porque
aqui é assim" teriam que ter sido formados e formadores da
nossa sociedade, frequentado nossas instituições sociais e, também, nossas escolas; teriam que ter sido
"civilizados".
A intenção do relato anterior não é moralista nem deseja propor um
"modelo indígena de existência"; é ressaltar aquela que, no nosso
entender, é a maior tarefa dos educadores e das educadoras, na junção entre a epistemologia e a política: o esforço de destruição do "porque aqui
é assim".
A ruptura do "porque
aqui é assim" principia pela recusa à ditadura dos fatos consumados e à
ditadura fatalista de um presente que aparenta ser
invencível, tamanhos são os obstáculos cotidianos com os quais nos deparamos.
É preciso, em Educação,
reinventar, em conjunto, uma ética da rebeldia, uma ética que reafirme nossa possibilidade de dizer não e que valorize a inconformidade
docente.
Não é mero acaso que a primeira palavra, de
fato, que um ser humano aprende a dizer e a entender é o não. Seja oral ou gestualmente, o não é a fundação a partir da qual se constroi nossa principal
característica: a liberdade, a capacidade de ultrapassar as determinações da
natureza e das situações presumidamente limitantes. Só quem é capaz de dizer o não pode dizer o sim,
isto é, pode escolher e acatar deliberadamente o curso das
circunstâncias e das exigências externas e internas.
Ser humano
é ser junto. É necessário negar a
afirmação liberticida de que "a minha liberdade acaba quando
começa a do outro". A minha liberdade acaba quando
acaba a do outro; se algum humano ou humana não é livre, ninguém é livre.
Se alguém não for livre da fome, ninguém é livre da fome. Se algum homem ou mulher não for livre da
discriminação, ninguém é livre da discriminação. Se alguma criança não for livre da falta
de escola, de família, de lazer, ninguém é livre.
A Educação e a Escola são os lugares nos quais podemos dizer e exercer
mais fortemente o nosso não. Não à miséria, não à injustiça; não à contradição
humano X humano; não à Ciência exclusivista; não ao poder opressor.
Afinal de contas, por que somos educadores e educadoras? Por que dedicarmos
toda uma existência a essa atividade cansativa, econômica e socialmente
prejudicada e desvalorizada, entremeada de percalços?
Tenho uma suspeita: por causa da paixão. Paixão pelo quê? Por ganhar pouco, trabalhar muito e, toda noite, querer
desistir e, no dia seguinte, de manhãzinha, estar, de novo, na escola? Vinte,
trinta (aposenta e volta) quarenta ou mais anos na profissão, alimentando o corpo docente nas reuniões movidas a café, chá e bolacha?
Não. Paixão por uma ideia irrecusável: gente foi feita para ser feliz! E esse é nosso trabalho; não só nosso, mas também nosso. Paixão pela
inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela derrota da
desesperança; paixão pela ideia de, procurando tornar as pessoas melhores,
melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma, pelo futuro.
Nosso "negócio” é o futuro... Cada um e cada uma de nós tem contato diariamente com o futuro: muitas e
muitos, quando começaram a dar aulas, tinham 16 anos de idade, e os alunos 7;
fizemos 20, eles chegaram com 7; atingimos os 30, eles estavam com 7,
alcançamos 40, e eles 7 etc. etc.
Cada dia, encontramos o que há de mais novo na humanidade, porque também o somos.
Desse ponto de vista, é absurda a ideia que entende que alguém, quanto mais vive, mais velho
fica. Para que alguém, quanto mais vivesse mais velho se tornasse, teríamos que
ter nascido prontos e irmos nos
gastando. Ora, isso acontece com carros, fogões ou sapatos; com humanos
e humanas, não. Nascemos não-prontos
e vamos nos fazendo; eu, neste momento, sou o mais novo de mim, minha mais nova
edição ("revista e ampliada") e, se o critério para a velhice é o
tempo, o mais velho de mim está no passado.
Gostaríamos de retomar aqui, como conclusão, algo que escrevemos quando
éramos mais velhos:
O educador como partejador de
futuro é um educador que procura realizar
as possibilidades que a Educação tem de colaborar na conquista de uma
realidade social superadora das desigualdades. Estou entendendo realizar como tornar real mesmo; muitas vezes fala-se
em realizar como um anglicismo originado de to
realize (compreender, constatar), que limita a realização das
possibilidades ao ‘dar-se conta’ delas.
A nova realidade social
a ser parida também por nós educadores é mais do que uma espera (nostalgia do
futuro); é um escavar no hoje de nossas práticas à procura daquilo que hoje
pode ser feito. Esse hoje é uma das pontas do nó do futuro a ser desatado,
fruto de situações que não se alteram por si mesmas nem se resolvem com um
"ah! se eu pudesse...", "ah!, no meu tempo". ...
Nosso tempo, o dos educadores, é este hoje em que já se encontra, em
gestação, o amanhã. Não um qualquer, mas um amanhã intencional, planejado, provocado
agora. Um amanhã sobre o qual não possuímos
certezas, mas que sabemos possibilidade.
Pode parecer romântico (até
piegas); no entanto, é dessa utopia que não nos podemos apartar, sob a pena de
perdermos o sentido de humanidade.
E nessa paixão pelo humano que habita, de forma convulsiva, a tensão
articulada entre o epistemológico e o político, onde se dá o encontro do sonho
de um Conhecimento
como ferramenta da Liberdade e de um Poder como amálgama da convivência
igualitária.
Há um ditado chinês que diz que, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um pão,
e, ao se encontrarem, eles trocam os pães, cada homem vai embora com um;
porém, se dois homens vêm andando por
uma estrada, cada um carregando uma ideia, e, ao se encontrarem, eles trocam
as ideias, cada homem vai embora com duas.
Quem sabe é esse mesmo o sentido do nosso fazer: repartir ideias, para
todos terem pão...
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